Tati Bernardi

Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”.

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Tati Bernardi
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Sair de casa

Por Deus, o que eu estou fazendo aqui, Renata?

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Renata insiste para que eu tire o moletom quentinho e coloque uma roupa de gata pegadora. Um frio lá fora. Eu tenho tudo, Renata. Tenho um corredor lotado de livros, uma televisão imensa de frente para a minha cama, mantas elétricas que me esquentam as costas e a bunda (e é tanta felicidade que solto minigritinhos espasmáticos).

O prazer que sinto quando meto uma pomada Cataflam na lombar e me deito nessas mantas elétricas. Com um chá. Um livro do Carrère. Meu Deus. Tenho novas meias de cashmere. Eu não quero nunca mais sair de casa. Esta semana comecei a rever tudo do David Lynch. Renata, eu sou tão feliz.

Trabalho com o que me dá tesão, tenho uma filha com alta performance para ironias, tenho amigos suficientes para que eu nunca precise reservar uma mesa pequena nos meus aniversários, tenho sempre uns dois ou 12 flertes fixos para comentar "gostosa foguinho gostosa" nos meus stories, e há pelo menos um ano vivo uma relação intensa com o que eu chamo de "O Campeão", um vibrador que suga na ponta, penetra no meio e faz coceguinhas atrás. Meu moletom é meio vagabundo, mas é de veludo e é dourado, o que me garante que sou a rainha absoluta da minha vida.

A imagem mostra uma bola de discoteca suspensa no teto, refletindo luzes vermelhas que criam um padrão de pontos no ambiente escuro ao redor.
"Chego num galpão escuro, abarrotado de gente. Por Deus, o que eu estou fazendo aqui, Renata?" - Pedro Affonso - 29.jun.2024/Folhapress

Tenho meus pais, meu pai de santo e as cinco guias que ele cruzou para mim e levo sempre embaixo das roupas. Tenho meus banhos de ervas benzidas. Tenho duas imagens de Santa Rita ao lado da cama. Tenho um analista cantor, um professor de francês lacaniano, uma otorrino que me ensina a dormir no avião sem uso de tarjas pretas, um clínico geral que coloca os ouvidos na minha barriga e "escuta" meus órgãos e uma psiquiatra que vai a Brasília brigar pela descriminalização da maconha. Eu tenho tudo.

Renata vai arrancando roupas do meu armário. Vamos, você vai comigo. Vai comigo, sim, senhora. Você está belíssima com esse cabelo meio sexy, meio cabeça de esfiha. Vamos, agora. Levanta, veste essa roupa. Vai de meia-calça e sainha, sim, senhora. Não tem nada de frio, não. Renata é produtora, brava, e eu adoro que mandem em mim. Me arrumo. Chego num galpão escuro, abarrotado de gente. Por Deus, o que eu estou fazendo aqui, Renata?

Renata vê um homem a quem chama de "moço mais bonito da festa". Eu olho e vejo um borrão. Não é bonito, Renata. É, sim, é o mais bonito da festa. Renata dança e me empurra com os cotovelos, e eu quase caio em cima do moço-borrão. O moço-borrão puxa papo: "Você é aquela Bernardes, né?". Quero me matar. Renata desaparece. Manda mensagem: "Ou você beija esse cara ou eu te mato". Bernardes não quer beijar, Bernardes só está sentadinha na única pontinha de banco que existe porque detesta ficar em pé por muito tempo. Bernardes só está esperando Renata e as outras amigas voltarem da maior fila de banheiro da história.

Ele é o clichê do paulistano intragável do centro expandido. Obviamente, "está saindo" de muitos anos sabáticos (herdeiro-loser) porque precisou entender quem afinal ele era (herdeiro-mala) e "tudo bem, esse tempo foi tão importante" (herdeiro-herdeiro).

Quando estou prestes a me levantar para chamar um Uber, uma senhora bochechuda de cabelos vermelhos, roupa equivocadíssima de lambaeróbica e cara de maluca vem correndo em nossa direção. Ela joga a sua bolsa no meu colo –"Segura aí!"– e encaixa a sua pelve no moço-borrão. Então ela enfia a língua na boca dele, cavalga e começa a gemer alto. Ele pede que ela pare, saia, mas depois lhe dá tapas na bunda e os dois rolam pela calçada suja de urina de cachorro.

As pessoas me olham com compaixão, tipo "tadinha, sai daí". Eu saio e tenho um ataque de riso que começa no carro e termina na minha cama, em cima da minha manta elétrica. Renata quer saber como foi. Eu digo que está sendo maravilhoso.

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